A saúde a um toque dos dedos
domingo, 15 de abril de 2012
Sem saber, o epidemiologista bengalês Alain Labrique foi um dos pioneiros de uma revolução em curso na medicina que mudará para sempre a forma como médicos e pacientes gerenciam a saúde. Quando voltou dos Estados Unidos para Bangladesh, sua terra natal, em 2001, para coordenar um programa de prevenção de infecções em mulheres durante a gestação, o médico não conseguia sequer fazer uma ligação telefônica. “Levava um dia inteiro para falar com algum serviço médico central”, contou à ISTOÉ.
Em Bangladesh, mais de sete mil gestantes morrem anualmente em decorrência de infecções que poderiam ser tratadas no pré-natal. “Elas moram em regiões precárias, de difícil alcance, sem condições de higiene, com serviço de saúde praticamente inexistente”, relatou. Com tamanha dificuldade, Labrique percebeu que apenas ajuda médica seria insuficiente. Era urgente criar um sistema para saber quantas mulheres necessitavam de auxílio e o que era preciso para atendê-las com rapidez e provê-las com informações básicas. Com a chegada do celular ao país em 2004, Labrique testou o “M-Labor”, processo de envio de mensagens que, em um teste, ajudou 500 mulheres a saber o que fazer na hora do parto.
Em 2011, já com os smartphones, o projeto evoluiu para o aplicativo “M-Care”. Nele, membros da comunidade inserem quem são as mulheres e quais problemas enfrentam. Também trocam mensagens com os médicos e recebem orientações de como agir. A equipe fica de sobreaviso e, numa situação de emergência, é acionada com rapidez. O sistema ajuda ainda a elaborar dados para o desenvolvimento de programas para diminuir a alta mortalidade entre mulheres. Com ele, foi possível chegar a tempo a 89% dos nascimentos e evitar infecções prévias em 65% dos casos – antes, apenas 12% das mulheres tinham acesso a serviços médicos.
Com seu projeto, Labrique, na verdade, está fazendo parte da m-Health, um jeito novo de prestar e receber serviços dirigidos para a construção de uma vida saudável com base no uso de aparelhos portáteis de comunicação. O termo é a sigla, em inglês, de mobile health. Em português, quer dizer saúde móvel. Na prática, significa exatamente isso. Apenas com um smartphone ou um tablet na mão, hoje é possível fazer diagnósticos, registrar indicadores como taxa de açúcar no sangue ou nível de pressão arterial, conter um surto de ansiedade ou traçar um plano personalizado de treinos físicos, por exemplo, não importa o lugar onde se esteja. E com os mesmos aparelhos, as informações podem ser compartilhadas com quem for necessário. O paciente pode mandá-las para o médico, o médico para o paciente, o professor de medicina para o estudante, o médico para outro médico em busca de mais uma opinião. Enfim, é a saúde móvel, e a um toque dos dedos.
Para proteger os portadores da ¬doença de Alzheimer, que traz enorme confusão mental, há opções como o Simap, criado pela Vodafone e a Cruz Vermelha da Espanha. O aplicativo grava a posição geográfica do paciente a cada três minutos e a informação é enviada a médicos e familiares em tempo real. Se o indivíduo ultrapassar uma área predeterminada, o celular do paciente e dos familiares soa um alarme.
No fitness, a variedade é igualmente ampla. “Há desde aqueles que verificam se há academias nas redondezas até os que permitem trocar informações sobre treinos nas redes sociais”, diz Bruno Franco, coordenador de inovação do Grupo Bodytech. Na área de nutrição, há softwares que possibilitam a obtenção das informações nutricionais dos produtos a partir da leitura do código de barras do rótulo. Para os interessados em bem-estar encontram-se alternativas que ensinam ioga e meditação e até acordam o usuário na fase mais leve do sono, a mais propícia para o despertar.
Em vários casos, há um casamento dos aplicativos com outras tecnologias. O objetivo, na maioria das vezes, é usar os tablets ou smartphones para captar imagens ou indicadores como pressão arterial e batimentos cardíacos e encaminhar os dados para o médico. Muitas dessas opções estão sendo usadas por portadores de doenças crônicas. Há, por exemplo, sistemas indicados para os diabéticos, que necessitam acompanhar as oscilações das taxas de açúcar no sangue (glicemia). Em Minas Gerais, está em teste um dispositivo no qual o paciente insere os números das medições automaticamente no aparelho. Depois, basta colocá-lo na tomada para que os dados sejam enviados para o computador do médico. “Avaliamos, em tempo real, o que está acontecendo e se for preciso ajustamos as medicações”, diz o endocrinologista Gustavo Penna, criador do sistema.
Iniciativas como essas estão mostrando eficiência. Um estudo com 163 pacientes acompanhados na Universidade de Maryland (EUA) revelou que os que usaram aplicativo criado pela instituição para monitorar a glicemia reduziram a glicemia em quase dois pontos quando comparados aos que não utilizaram a novidade. “Dizemos aos pacientes que eles podem controlar a doença com exercícios físicos, medicamentos e dieta”, diz a epidemiologista Charlene Quinn, que comandou a pesquisa. “Agora, o sistema o ajuda a acompanhar como isso acontece.”
Entre os recursos para diagnóstico está um acessório que, acoplado ao smartphone, vira um aparelho de ultrassom. Além de realizar imagens de um feto, ele localiza aneurismas abdominais e pedras nos rins. “Estamos buscando autorização para comercializá-lo em outros países, inclusive o Brasil”, disse à ISTOÉ David Mazar, CEO da Mobisante, empresa que criou o produto.
Uma das maiores vantagens de sistemas como esse é possibilitar o diagnóstico a distância. Uma iniciativa que aproveitou bem esse potencial é o EyeNetra, aparelho que, ligado ao celular, calcula o grau de miopia ou astigmatismo e avalia a presença de catarata. Desenvolvido pelo indiano Ramesh Raskar, do Massachusetts Institute of Technology (EUA), e pelo brasileiro Vitor Pamplona, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o equipamento foi testado em Teresina e em Porto Alegre. “Ele permite fazer diagnósticos em áreas remotas”, diz o oftalmologista Paulo Schorr, vice-presidente do Instituto da Visão, da Universidade Federal de São Paulo. “E o sistema é tão eficaz quanto os testes convencionais”, assegura Pamplona.
Aplicativos específicos para médicos, com informações sobre doenças e remédios, por exemplo, também estão ajudando a melhorar o sistema de saúde. No Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, há um mês foram distribuídos 48 iPads a residentes. Nos tablets, há aplicativos como o Up to Date, por meio do qual os jovens médicos ficam sabendo das novidades em tratamentos. “Vemos tudo o que sai de novo, o que está em teste”, explica Miguel Nassif, um dos que receberam o tablet. “É uma biblioteca que levamos para onde quisermos. Tem acesso fácil a conteúdo confiável e atualizado.”
Na Universidade de Chicago (EUA), um levantamento com 115 residentes mostrou que 90% usam tablets constantemente em consultas e 78% acreditam que a tecnologia os torna mais eficientes. “A tecnologia agiliza o trabalho desses médicos, que precisam coletar e acessar informações em um curto espaço de tempo”, diz Christopher Chapman, chefe de residência da instituição americana.
Entre os profissionais mais tarimbados, consultar o smartphone ou o tablet também virou parte da rotina. O cardiologista Múcio Oliveira, diretor de emergência do InCor, usa o Epocrates (tem dados de doenças, drogas e exames) e um aplicativo que faz cálculo de risco, o Qx Calculate. “Ele ajuda a tomar decisões.”
Embalado pelo potencial da nova área, o médico residente Ricardo Maranhão, do Recife, criou um aplicativo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças, conhecida como CID-10. Foi por meio desse recurso, com mais 50 mil downloads, que o Conselho Federal de Medicina o contatou para desenvolver o Código de Ética Médica e o Diretrizes do Crack, que auxiliará no atendimento a dependentes. “Fiz esses aplicativos pensando na minha necessidade e eles tiveram um alcance que eu não imaginava”, contou.
O aplicativo Medicamentos de A a Z – que reúne 500 medicamentos com informações que incluem preço, nomes comerciais, genéricos e posologia –, da empresa Touché Mobile, também é um sucesso entre os médicos e pacientes, registrando mais de 40 mil downloads. “Ele é útil porque agiliza a comparação de preços e informações, que ficam disponíveis lado a lado na tela”, afirma Roberto Colnaghi, dono da empresa.
A força do fenômeno está fazendo com que universidades no mundo todo comecem a construir centros especializados em m-Health, de olho em um futuro promissor. Um estudo da Associação Internacional de Operadoras de Celular prevê, por exemplo, que a saúde estará totalmente integrada à tecnologia móvel em 2027, gerando um mercado de mais de US$ 23 bilhões. No Vale do Silício, berço de empresas como o Google, foi inaugurado o Centro de Computação do Corpo na Universidade do Sul da Califórnia. A parceria já rendeu aplicativos promissores. Um deles possibilita que os usuários verifiquem sua capacidade respiratória ao soprar no microfone do smartphone – é indicado para quem tem doenças respiratórias.
No Brasil, a Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo, acaba de criar o Centro Interdisciplinar de Tecnologias Integrativas. Ali, 60 estudantes de vários Estados do Brasil estão criando o futuro. “Muitos projetos estão a caminho”, diz o coordenador Marcelo Zuffo. Um deles é o desenvolvimento de roupas com sensores que registram sinais a serem transmitidos em tempo real a centrais médicas. “A proposta é que os doentes sejam monitorados por sensores de temperatura”, diz Adilson Hira, gerente de projetos do laboratório. Trata-se de um artefato que poderá ajudar, por exemplo, a identificar sintomas iniciais de infecções em crianças em tratamento contra o câncer – infecções estão entre as principais ameaças de morte imediata a esses pacientes.
O uso de recursos do gênero está mudando tanto a face da medicina que despertou uma discussão interessante. Por conta do que oferecem aos pacientes, há quem argumente que os sistemas da m-Health sejam uma espécie de “remédio”. Não é à toa que, nos Estados Unidos, eles já estão na mira do FDA. “Talvez seja com alguma surpresa que desenvolvedores verão que nos próximos anos muitos de seus aplicativos terão de ser aprovados pelo FDA antes de serem comercializados”, diz um documento publicado pela instituição no fim de 2011. No Brasil, porém, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária ainda não prevê regulação sobre o setor.